Texto referencial: Literatura e seus reflexos: o cinema em O Homem Duplicado, de José Saramago. Thaís Feitosa de Almeida, em Série E-books ABRALIC, 2018, Rio de Janeiro, 2018, p.33.
Fotografia e cinema surgiram, cada qual a sua maneira, causando fascinação e estranhamento. Ambas artes, produzidas “magicamente” por máquinas, impactam por sua verossimilhança de representação do real.
Segundo posto por Saramago, a problemática nessa questão é deixar de entender tais imagens como mera representação e assumi-las como realidade – a “reprodutibilidade técnica como agente modificadora da percepção do real”, dito por Walter Benjamin.
A manipulação da mídia caracterizada como televisiva pode também ser estendida às ferramentas digitais que lidam majoritariamente com fotos e vídeos: Instagram e Youtube. No Instagram, as fotografias podem – e geralmente são – escolhidas e editadas profissionalmente para montar um perfil que visa as vendas: são selecionados ambientes, objetos, produtos e paletas de cores que combinam uma estética semelhante aos próprios filtros de fotos disponibilizados pelo aplicativo, configurando-se como cortinas frente à nossa visão.
O perfil exemplificado na imagem pertence a Nath Araújo, ilustradora, formada em Publicidade, que, com mais de meio milhão de seguidores, criou sua identidade visual, dentro dos padrões supracitados. Cada postagem de fotos contém produtos disponíveis à compra e que se encaixam na estética: tons de rosa pastel em cada imagem, agendas e cadernos, roupas, esmaltes, maquiagens, objetos de decoração. Os mais de 600 mil seguidores recebem no seu feed, diariamente, fotos e vídeos do estilo de vida da digital influencer estrategicamente montado. Os milhares de followers são influenciados a adquirir produtos que possibilitem, segundo querem acreditar, viver uma vida (perfeita) semelhante a da ilustradora.
A fala de Saramago quanto à vida que levamos no mundo audiovisual à parte, se encaixa nas discussões sobre os sentidos que buscamos de nós mesmos quando criamos um perfil em uma rede social. “Perdidos, em primeiro lugar, de nós próprios, e em segundo lugar, perdidos na relação com o mundo. E acabamos a circular aí, sem saber muito bem nem o que somos, nem pra quê servimos, nem que sentido tem a existência” (SARAMAGO, 2001, 01:00:59- 01:01:38). Assim, qual o sentido para esse perfil, em que fazemos uma duplicata de nós mesmos?
Na narrativa de “O Homem Duplicado” a imagem que substitui o real é uma imagem composta de pixels – bem como no Instagram. Os pixels são descritos no texto, nas palavras de Flusser, como “nada”. O(s) sentido(s) de uma imagem digital é(são) por nós atribuído(s), ganhando força ao substituir a realidade. Muito provável que não chegue a 10% dos seguidores que conheçam, de fato, a realidade cotidiana da ilustradora, por mais que faça stories no seu Instagram e vlogs no seu canal do Youtube mostrando sua rotina. As câmeras que ela utiliza capturam conforme o desejo da influenciadora, o que é, como já definido, uma representação do real. Os seguidores e inscritos, porém, em sua maioria, adotam as imagens como o que Saramago havia dito: a própria realidade.
Na obra de Saramago analisada no texto, o personagem Tertuliano se agarra ao concreto, preferindo os livros à luz que paira, branca, numa tela, e ali, cria imagens – o nada vendido do cinema. Dentro da tela da TV, em um emaranhado de fios elétricos e inúmeras peças minúsculas, havia sua versão digital, o abstrato, Daniel Santa-Clara.
Ambos personagens compartilham a mesma aparência e, de igual forma, o fazemos nas selfies que postamos em nossos feed e stories. Porém, são pessoas diferentes. É completamente possível falsificar as informações dadas como verdadeiras nas fotos, vídeos, marcações, check-ins de localização e mostrar ser alguém, totalmente diferente, uma pessoa duplicada. Em um vídeo de “desafio”, duas Youtubers norte-americanas, fingiram a todos os seguidores, amigos e familiares, que haviam feito uma viagem a Londres. Postaram fotos de lugares que tinham um ambiente e objetos semelhantes aos encontrados em Londres e característicos do lugar, check-ins alterando a localização do GPS, no aeroporto com malas vazias fingindo esperar o avião, e depois, ao estimar as horas de voo e chegada, exibiram stories das acomodações do hotel – que na verdade era a casa de alguém – a imagem que substitui o real.
O filme em que Daniel Santa-Clara atua é dado como de distração, divertimento: “produtos rápidos para consumo rápido que não aspiram a mais que entreter o tempo sem perturbar o espírito”, num plano de sensações imediatas, segundo Flusser. Para Tertuliano, entretanto, as imagens perduram em sua mente. Diferentemente das razões dos personagens, as imagens digitais se fixam em nossos olhos e mentes.
Ainda de acordo com Flusser, “as nossas relações humanas nos divertem” quando as vemos na ótica do divertimento. Os grandes digital influencers disputam espaço nos “conteúdos” que produzem, o entretenimento e os acontecimentos da vida pessoal que, para seu público, acabam se tornando o mesmo. As próprias relações pessoais dos influenciadores se integram ao conteúdo a ser consumido e divertem seu público.
Em conclusão do texto analisado, entende-se que a obra de Saramago “problematiza o controle exercido sobre as massas na contemporaneidade”. Controle este, que aqui, exemplificamos no Instagram e a forma que a ferramenta molda não somente as centenas de milhares de anônimos chamados de followers mas também aqueles que são seguidos, os quais vendem produtos e a imagem de estilo de vida ilusória, substituindo a realidade para muitos, cujos esforços em construir uma vida semelhante custam dinheiro, sacrifícios desnecessários e uma busca incessante, sem sentido, baseada em pixels constituídos de nada.
Fotografia e cinema surgiram, cada qual a sua maneira, causando fascinação e estranhamento. Ambas artes, produzidas “magicamente” por máquinas, impactam por sua verossimilhança de representação do real.
Segundo posto por Saramago, a problemática nessa questão é deixar de entender tais imagens como mera representação e assumi-las como realidade – a “reprodutibilidade técnica como agente modificadora da percepção do real”, dito por Walter Benjamin.
A manipulação da mídia caracterizada como televisiva pode também ser estendida às ferramentas digitais que lidam majoritariamente com fotos e vídeos: Instagram e Youtube. No Instagram, as fotografias podem – e geralmente são – escolhidas e editadas profissionalmente para montar um perfil que visa as vendas: são selecionados ambientes, objetos, produtos e paletas de cores que combinam uma estética semelhante aos próprios filtros de fotos disponibilizados pelo aplicativo, configurando-se como cortinas frente à nossa visão.
O perfil exemplificado na imagem pertence a Nath Araújo, ilustradora, formada em Publicidade, que, com mais de meio milhão de seguidores, criou sua identidade visual, dentro dos padrões supracitados. Cada postagem de fotos contém produtos disponíveis à compra e que se encaixam na estética: tons de rosa pastel em cada imagem, agendas e cadernos, roupas, esmaltes, maquiagens, objetos de decoração. Os mais de 600 mil seguidores recebem no seu feed, diariamente, fotos e vídeos do estilo de vida da digital influencer estrategicamente montado. Os milhares de followers são influenciados a adquirir produtos que possibilitem, segundo querem acreditar, viver uma vida (perfeita) semelhante a da ilustradora.
A fala de Saramago quanto à vida que levamos no mundo audiovisual à parte, se encaixa nas discussões sobre os sentidos que buscamos de nós mesmos quando criamos um perfil em uma rede social. “Perdidos, em primeiro lugar, de nós próprios, e em segundo lugar, perdidos na relação com o mundo. E acabamos a circular aí, sem saber muito bem nem o que somos, nem pra quê servimos, nem que sentido tem a existência” (SARAMAGO, 2001, 01:00:59- 01:01:38). Assim, qual o sentido para esse perfil, em que fazemos uma duplicata de nós mesmos?
Na narrativa de “O Homem Duplicado” a imagem que substitui o real é uma imagem composta de pixels – bem como no Instagram. Os pixels são descritos no texto, nas palavras de Flusser, como “nada”. O(s) sentido(s) de uma imagem digital é(são) por nós atribuído(s), ganhando força ao substituir a realidade. Muito provável que não chegue a 10% dos seguidores que conheçam, de fato, a realidade cotidiana da ilustradora, por mais que faça stories no seu Instagram e vlogs no seu canal do Youtube mostrando sua rotina. As câmeras que ela utiliza capturam conforme o desejo da influenciadora, o que é, como já definido, uma representação do real. Os seguidores e inscritos, porém, em sua maioria, adotam as imagens como o que Saramago havia dito: a própria realidade.
Na obra de Saramago analisada no texto, o personagem Tertuliano se agarra ao concreto, preferindo os livros à luz que paira, branca, numa tela, e ali, cria imagens – o nada vendido do cinema. Dentro da tela da TV, em um emaranhado de fios elétricos e inúmeras peças minúsculas, havia sua versão digital, o abstrato, Daniel Santa-Clara.
Ambos personagens compartilham a mesma aparência e, de igual forma, o fazemos nas selfies que postamos em nossos feed e stories. Porém, são pessoas diferentes. É completamente possível falsificar as informações dadas como verdadeiras nas fotos, vídeos, marcações, check-ins de localização e mostrar ser alguém, totalmente diferente, uma pessoa duplicada. Em um vídeo de “desafio”, duas Youtubers norte-americanas, fingiram a todos os seguidores, amigos e familiares, que haviam feito uma viagem a Londres. Postaram fotos de lugares que tinham um ambiente e objetos semelhantes aos encontrados em Londres e característicos do lugar, check-ins alterando a localização do GPS, no aeroporto com malas vazias fingindo esperar o avião, e depois, ao estimar as horas de voo e chegada, exibiram stories das acomodações do hotel – que na verdade era a casa de alguém – a imagem que substitui o real.
O filme em que Daniel Santa-Clara atua é dado como de distração, divertimento: “produtos rápidos para consumo rápido que não aspiram a mais que entreter o tempo sem perturbar o espírito”, num plano de sensações imediatas, segundo Flusser. Para Tertuliano, entretanto, as imagens perduram em sua mente. Diferentemente das razões dos personagens, as imagens digitais se fixam em nossos olhos e mentes.
Ainda de acordo com Flusser, “as nossas relações humanas nos divertem” quando as vemos na ótica do divertimento. Os grandes digital influencers disputam espaço nos “conteúdos” que produzem, o entretenimento e os acontecimentos da vida pessoal que, para seu público, acabam se tornando o mesmo. As próprias relações pessoais dos influenciadores se integram ao conteúdo a ser consumido e divertem seu público.
Em conclusão do texto analisado, entende-se que a obra de Saramago “problematiza o controle exercido sobre as massas na contemporaneidade”. Controle este, que aqui, exemplificamos no Instagram e a forma que a ferramenta molda não somente as centenas de milhares de anônimos chamados de followers mas também aqueles que são seguidos, os quais vendem produtos e a imagem de estilo de vida ilusória, substituindo a realidade para muitos, cujos esforços em construir uma vida semelhante custam dinheiro, sacrifícios desnecessários e uma busca incessante, sem sentido, baseada em pixels constituídos de nada.