Ser estudante de Letras é praticamente um pressuposto de que você gosta de ler e escrever. Há quem escreva poesia, e há quem ame prosa, que é o meu caso. E não somente amo prosa, como encontrei meu lugar na literatura que é Ficção Científica. Desde o segundo período de Letras faço parte do grupo de pesquisa chamado FICÇA que estuda os gêneros literários da área de sci-fi e fantasia também, além de estudos de gênero, discurso, memória e etc, mas isso é coisa pra outro texto.
O que quero dizer aqui é que desde sempre tenho publicado historinhas que escrevo e quero compartilhar aqui nesse blog um diálogo que fiz que combina as minhas duas áreas de pesquisa: ficção científica e feminismo. É um textinho em forma de diálogo, espero que gostem! (não dei um título).
– Então, amigo – disse após um breve sorriso –, parece que a sua desgraça cotidiana lhe aconteceu novamente.
– Confesso, não que estava sentindo falta, mas que pressentia que isso aconteceria.
– Por isso chamo de desgraça cotidiana. É terrível, mas faz parte da rotina.
– Uma rotina cruel, confesso.
– E rotinas não sempre o são? Veja – acomodou-se na cadeira confortável –, não é horrível levantar no mesmo exato minuto todos os dias? E depois tomar o mesmo café, na exata quantidade do dia anterior, levando o mesmo tempo de sempre para mastigar o pão? E, aliás, sempre pão?
– Confesso que sim.
– Acredito que tudo deveria ser diferente, cada dia diferente. Até porque cada dia o é.
– Nisto não concordo. Hoje, por exemplo, é uma triste tarde de janeiro. Mas este mesmo dia se repetirá próximo ano.
– Este mesmo?
– Sim! Todo calendário tem os mesmos dias todos os anos.
– E os bissextos?
– Isto também é rotina, apenas com maior intervalo. Mas é rotina, confesso.
– Mas meu amigo... Veja. Você está falando da fórmula, eu falo do conteúdo. E apesar de serem os mesmos dias todos os anos quanto aos números, não o são os dias da semana! Se hoje é uma quinta, próximo ano não o será.
– Confesso que tens razão – os dois calaram-se por um instante – Então, como farias para cada dia ser único? A rotina é cruel.
– Agora faço uso de sua palavra e digo que confesso que não sei.
– Minha palavra?
– Veja, você frequentemente repete “confesso”, até quando não caberia.
– Mas...! Confesso que faço – os dois abriram largos sorrisos.
– Manias, não é mesmo? Todos as têm. Este é o mais curioso a respeito da humanidade. Sempre defendemos que somos todos iguais, sem distinção. Porém, ao mesmo tempo, somos diferentes. É controverso dizer que todos somos igualmente únicos.
– Fale por você a defesa dos direitos iguais. Eu sempre mantive a idéia de equidade.
– Veja, meu amigo. Isso não seria o mesmo? – e abaixou o tom de voz a ponto de um sussurro – E como diz isso tão naturalmente? O nosso governo agora pertence a elas.
– Confesso que sou um rebelde, nesse caso.
– Sinto-me vivendo em 1984.
– Não entendi.
– Orwell, meu amigo.
– Ah sim. Mas elas não vão nos torturar, vão? Somos um governo mais civilizado, sem todos aqueles problemas do passado. Nossa sociedade é perfeita, não é mesmo? Confesso que isso me assusta demasiado.
– As mulheres enfim alcançaram o que queriam. O movimento tão odiado outrora, agora lhes deu o poder sobre os homens.
– É o matriarcado.
– O que me faz lembrar que sua esposa chegará em breve do trabalho, não? Fez o que ela pediu?
– Confesso que isso dá trabalho, mas a casa não poderia estar mais perfeita. Olhe o chão como brilha. O metálico nunca foi mais espelhado.
– E o café que você fez também está magnífico.
– Obrigado. Confesso que sinto falta dela durante o dia, mas os serviços da casa me deixam ocupado.
– E os filhos, vê com frequência, meu amigo?
– Faz um mês que os vi, na confusão da praça, lembra-se?
– Sim, sim. O que pensa a respeito do ocorrido, meu amigo? Ainda não tinha tido a chance de lhe perguntar. Veja, acho um pouco exagerado a propagação da mídia, a respeito daquilo.
– Confesso que não me sinto a vontade para falar. Lembra-se de ter mencionado Orwell? Às vezes tenho a sensação de estar sendo vigiado.
– Mas nós trabalhamos com confiança, transparência, consciência.
– Não acredito que a verdade seja o que nos é dito, confesso, mas não quero me delongar no assunto.
– Interessante pensamento, meu amigo. Entretanto, penso que seja um tanto arriscado ter essas suposições.
– Agora faço uso de sua palavra: “Veja”, esse medo de ter um pensamento diferente, isso não deveria ser normal. Não superamos nossos antepassados? Eles não tinham medo de pensar diferente.
– Antes havia muitas opiniões, divergentes até, e era isso que prejudicava a convivência.
– Confesso que preferia anteriormente.
– Veja, meu amigo, digo isso pelo seu bem. Olhe ali longe – e os dois direcionaram o olhar daquela varanda no topo de um prédio altíssimo. Apontou o dedo para o horizonte cheio de prédios e máquinas voadoras –, este paraíso tecnológico só foi possível com muito sacrifício. Não há como preferir algo que supostamente é melhor que isso. Nada pode ser.
– Confesso que você está certo mencionar os sacrifícios, pois foram muitos.
– É necessário, meu amigo.